EL PULPO

A memória como ferramenta para construção de ficções


A memória é uma ferramenta complexa. Na maioria dos momentos, quando nos lembramos de algo, temos certeza que aquilo aconteceu. Preferimos esquecer que nossa percepção, o tempo e uma série de outros fatores e estímulos acabam alterando nossa visão do passado. Para auxiliar neste processo de certeza em relação ao que já passou e à memória nós tínhamos a fotografia. Digo tínhamos porque é cada vez mais claro, especialmente para quem pesquisa e produz fotografia, que estas imagens técnicas não são registros objetivos de uma realidade, mas sim recortes e opiniões sobre determinados temas e ocasiões. Nosso álbum de fotografias é, assim como nossa memória, consideravelmente ficcional.

Talvez por essa relação complexa, a memória seja um dos grandes temas da fotografia, mostrando uma série de abordagens possíveis, das mais diretas às mais complexas. Dentro deste cenário, os trabalhos mais instigantes a lidar com a relação entre fotografia e memória são aqueles que tem consciência e colocam como assunto central do ensaio esta dualidade entre o desejo de registrar uma realidade e a inevitável construção de uma ficção.

Ao tomar a fotografia de família, de registro, como material bruto para a construção de narrativas fotográficas, as possibilidades criativas se tornam praticamente infinitas. As possibilidades de alteração de sentido e de forma destas imagens originais permitem uma transformação intensa do conteúdo original, mas sempre deixando dúvidas em quem vê as imagens: será que um dia isto foi verdade? O quanto do objetivo inicial destas fotografias ainda está presente nesta nova composição? O quanto posso confiar na minha memória, na memória destas imagens e nas histórias propostas pelo artista?

Em This Could Have Been Good Estefania Gavina coloca estas e uma série de outras dúvidas em nossa cabeça. O ensaio – desenvolvido à partir de imagens da família da artista e de incorporações de outros acervos fotográficos familiares, muitas vezes encontrados no lixo – nos leva para um universo de decomposição e reorganização da memória, criando colagens em que o surrealismo e a fantasia ditam o ritmo.

Estefania é uma artista argentina, radicada no interior do Estado de São Paulo, na cidade de Campinas. Entre idas e vindas ao seu país natal, Estefania conseguiu salvar um acervo de fotografias de sua avó, que seria jogado fora pela mãe da artista. Deste salvamento surgiu o primeiro lote de material para suas colagens e intervenções, além do título do trabalho, escrito por sua vó atrás de uma das fotografias. O título, aliás, é um dos pontos fortes deste ensaio. Sua construção como hipótese e desejo permite que as imagens sejam livres, buscando esta nova realidade, que poderia ser melhor do que a original. Além disso, a potência e a dureza do gesto da avó – que marca uma fotografia com a indicação de que sua vida e sua realidade poderiam ter sido boas – é fantástica.

A construção de novos corpos e organizações formais é uma das estratégias mais interessantes usadas pela artista em seu processo de criação. Ao unir corpos, momentos e ambientes de imagens, épocas e famílias distintas, Estefania aproxima cada uma dessas imagens e escancara a potência ficcional e poética de sua união, desta criação de novos e mais envolventes mundos. Os pequenos trechos de texto e os números presentes nos versos das imagens também nos transportam, trazendo mais um elemento para a construção desta memória coletiva, forjada pela mão da autora ao unir universos tão distintos.

Ao abandonar a pretensa relação entre fotografia e realidade e – especialmente – entre memória e realidade, a artista se vê livre para criar o que bem entender, como bem entender e, ainda assim, preservando uma série de códigos que transpassam a construção de grande parte das famílias ocidentais e seus registros visuais. Ao dar novo sentido às imagens vernaculares que dão origem a obra, Estefania pode reinventar uma série de passados distintos, dando ares surrealistas a esta coleção de memória encontradas, descartadas por seus donos originais.


Texto por:

Felipe Abreu

17 março de 2017